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Cartas de cura

  • Foto do escritor: Helga
    Helga
  • 4 de jan. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 24 de set.


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Mãe,


Tanta coisa passou e eu fico pensando que você e eu continuamos tentando acabar esse quebra cabeças de peças espalhadas, juntar os cacos tão miúdos do vaso estilhaçado. Não sabemos ainda como vai ser isso. Como serão os próximos movimentos. Mas a vontade é grande. Eu vejo. Eu sinto.


Somos água e azeite que mesmo tão diferentes insistem em habitar o mesmo copo meio cheio. Olhando uma para o mundo da outra como se unidas pelas disparidades assustadoras.


Tem tanta paz em você. Sei que veio à custa de exercício de uma vida toda. Pela sua disciplina, que acho tão bonita no mesmo tanto que acho impossível de alcançar. Nunca soube de onde vem essa serenidade que você tem de sobra. Você diria que é de Deus e talvez tenha razão mesmo. Minha forma de manifestar Deus veio com porções de pimenta dedo de moça. Por mais que eu tenha mudado, ou ainda mude, há um turbilhão dentro de mim que não assenta na serenidade, mesmo quando ninguém pode ver, pelas minhas atitudes controladas.


Tenho uma vontade de ser livre de tudo o que você representa mesmo amando tudo isso em você, porque me parece que te cai bem. Apesar de ter seguido a cartilha direitinho e ter feito tudo certinho, uma parte de mim se ressente por não ter sido aceita. A parte torta, errada, mazinha, esquisita... porque é assim que verdadeiramente sou. O combo taturana e borboleta, a que queima e a que distribui afetos.


Tem tanta coisa na minha CPU que não vejo sentido e desinstalar tem sido bem difícil porque me parece uma ofensa a você. A família que representa. Tem tanta coisa que reproduzi por tanto tempo e hoje percebo que não tinha nada de mim. Foi tudo importado.


Acho que cumpri bem o papel de boa menina, que também sou, mas quero cada vez mais espaço para a mulher que ainda vou ser. Aquela que cansou de ouvir patacoadas e fingir que estava tudo bem, com o coração apertado por não caber nas histórias que não a representavam. Não estava tudo bem não ser completa.


Que você continue olhando pro meu mundo dentro desse copo meio cheio que estamos e sinta que tudo que eu represento me cai bem. Te amo.



Pai,


A carta agora é a versão verdadeira, sem cortes. Aquela que te escrevi uma vez, inspirada por um seminário religioso, foi a falsiane, escrita para cumprir o papel de filha da santa, daquela que tudo perdoa, a mulher de verdade. Não sou minha mãe, enfim. Aquela carta era pra ela, eu não conversava com você. Afinal foi ela quem sempre nos uniu, não?


Você foi sempre tão ausente e assim mesmo te amei. Na vergonha, te amei. Na raiva, ainda mais. Quis tanto um sinal seu que eu valia a pena e você nem viu. Te amei em cada falta de abraço, de entendimento, de espelho.


Você não podia dar, né pai? Nem pode. É tão escasso até para si. Hoje, entendo. Aceito. Você também sangra por dentro. Talvez mais do que eu.




Irmão,


Eu queria te falar tanta coisa. Queria te abraçar agora até o tempo voltar. Queria ter te abraçado mais. Queria tanto ficar olhando nos teus olhos até que eles se comunicassem, os meus e os seus, e trocassem memórias de afetos passados.


Queria ter dito mais sobre mim. Queria ter te protegido, ter dito sempre que ficaria tudo bem. Que eu estaria com você. Mas não pude. Me defendi tanto de tudo, de mim, da vida, que nunca pensei em olhar para trás. Você estava lá. Sempre um menino bom.


Não queria ter te deixado sozinho porque te amo. Nunca nem fui capaz de dizer (apenas escrever). Queria que o tempo não tivesse tornado a gente tão diferente. Queria voltar no tempo em que a gente não tinha vivido tanto.


Sinto sua falta. Hoje a gente é estranho um do outro.


Queria não ter largado sua mão. Queria ser como você e nunca fui. Tanta intensidade não me teve serventia. Queria ser como você: não sair do equilíbrio, da linha reta, da educação moral e cívica. Mas não tenho o seu dom, irmão. Sempre estive em carne viva.


Queria poder escrever exatamente o que penso de você porque é sempre mais bonito do que eu consigo capturar para por no papel.


Irmão, segue sua vida tranquilo assim, te quero feliz. A gente se vê algum dia e eu vou te abraçar para sempre.


 
 
 

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