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  • Foto do escritorHelga

Carne e osso

Atualizado: 11 de out. de 2022


Meu autorretrato na parede debochou de mim desde o primeiro dia. Aqueles olhos de cílios longos sabem muito da minha humanidade. São fofoqueiros e fazem troça da minha perfeição fake cultivada com tanta pompa e circunstância. Às vezes penso em fazer um borrão deles com o carvão como vingança, mas me rendo porque me levam também a rir de mim.


Meu autorretrato na parede sabe que foi feito em um dia em que não tinha expectativas com relação ao resultado do desenho. Que tinha acordado com a criatividade a possibilidade da imperfeição ou da tela em branco e estaria tudo bem. Então entende o impacto que causou quando me vi por meio dele. O quanto foi libertador e assustador.


Meu autorretrato na parede trouxe os pedaços de que sou feita. O tanto de drama, humor e imaginação que tem no rolê do meu psiquê. Abriu o baú das emoções contidas. Me esquadrinhou inteira em PB e uns tons de cinza. Tudo isso com cara de costume.


Então em cada troca de olhar que temos vejo o quanto posso ser incrivelmente jeca em algumas situações e exalar carisma em outras tantas. O debochado do autorretrato escancara meu mar de vulnerabilidades em véu de força. Sussurra minha intensidade e transparência nos sentimentos e o fato de eu não conseguir fingir afeto. Tira das minhas entranhas a dificuldade de perdoar e a dor lancinante que vem quando machuco para me proteger.


Meu autorretrato na parede fala de distração crônica, de falta de memória para o passado, de ouvido de boa escutadora, de alegria compartilhada e de facilidade para atividades manuais. Garante que escrevo em linha reta em folhas sem pauta até de olhos fechados, que conserto quadros tortos nas paredes dos outros e que presto atenção nos pés das pessoas e não esqueço jamais.


Meu autorretrato na parede ri do meu esforço para ser “importante”, fazer tudo direitinho, não passar vergonha e nem decepcionar a torcida. Pra depois ficar aguardando curtidas e sentir que valeu a pena a patacoada. Mas sente um baita orgulho de mim quando ninguém está olhando e, à vontade na minha simplicidade desajeitada, faço coisas ridículas que divertem meu anjo da guarda, não me preocupo em fazer sentido e tenho ideias incríveis e as realizo num estalo de dedos, como se a informação viesse do além.


Desconfio, às vezes, que meu autorretrato tem vontade de fazer um borrão nos meus olhos com o carvão, como vingança por eu não ser de carne e osso. Eu debocho dele e o mantenho na parede.


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